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Textos

A noite dos tempos e o rosto verdaccio

por Diógenes Moura

O que fazer com o tempo quando não é ele o responsável por outro tempo, aquele que faz desaparecer, para uma cidade e suas personagens, os monumentos que lhes contam a sua própria história? Então, o tempo perde-se, dentro do outro, e tudo o que é, ou seria, a ciência de uma arqueologia desaparece, como se não houvesse passado, muito menos futuro. Portanto, s cidades e seus cidadãos passa a ser vistos como as coisas: uma coisa, outro coisa, nada mais. Alma Secreta. Série de fotografias de Ana Lucia Mariz, traz aos nosso olhos justamente uma posição inversa a esses processos de tempo perdido. O que ela vê é o que deveria estar impresso nos cânones de uma outra memória universal, que o próprio tempo constrói e desgasta, mas que o mundo não pode perder.

 

A série percorre ruínas e demolições de São Paulo – na capital e nas cidades de Santos, Sorocaba e Rio Claro – e na Bahia – em Salvador, Praia do Forte, Cachoeira e Ilha de Itaparica -, onde a fotografa levando em mãos uma lanterna, imprimiu a presença dos dias atuais, na calda da noite, utilizando-se da técnica light painting, para indicar, em cada cena, uma sensação pictória, o que faz Alma Secreta aproximar-se, a partir de alguns signos, da afirmação junguiana que traduz esses recortes para um tempo maior “do que o olho pode perceber”. O projeto teve início em 2002, a partir de demolições encontradas em São Paulo e, logo em seguida, quando os habitantes do Carandiru – seus gritos, suas histórias, suas mensagens na parede, seus santos, sua dor – deixaram aquele estigma de crueldade, uma pela outra (a de dentro, a de fora), e a edificação foi desativada. Ficaram as lembranças marcadas por certos destinos: nas imagens feitas nos escombros, cada personagem que por ali passou volta a ser construído, ainda de forma mais provocante, num esquema imagético que nasce a partir do vazio. É essa ausência da figura humana que faz com que Alma Secreta estabeleça um repertório muito particular, sensorial, flutuando entre o tempo e o espaço, mapeando diante do que não está inscrito.

 

A série que mostra o Carandiru desabitado funciona como um “grito parado no ar”. Mas não se trata de uma fotografia social, pensada para comover ao mostrar o local onde o sofrimento daqueles que não estão do lado de cá, como nós (...e onde estarão eles agora?), não poderá ser apagado: é justamente ao mostrar um certo desatino entre o silêncio e a ausência que a simplicidade de cada imagem alcança um estado de espírito, ao mesmo tempo, dilacerante, belo, oco. Vejamos: no chão de um corredor exposto e recortado pelo fio de luz da lanterna reconstrói a fé psicológica que ultrapassa a barreira das grades, sé é que isso é possível na vida real. Na imagem, sim. Em outra, a porta da cela aberta é capa de sugerir uma cena que chega a doer, “um saco vazio dentro da alma”, como escreveu Augusto dos Anjos, naquele tempo diáfano vivido no Engenho Pau d`Arco, na Paraíba. Todas as imagens que Ana Lucia Mariz fez no Carandiru nos mostram um processo de aproximação, de lucidez, de vida e morte: pratos e talheres esquecidos pelo meio dos escombros; uma escada, também abandonada, que pergunta, interminável, “até onde seremos capazes de fugir?”

 

Libertas na fotografia para fazerem parte de um documento real, e também desgastado pelo tempo, as imagens nos fazem pensar, em alguns momentos, nos cárceres de invenção do artista veneziano Giovanni Battista Piranesi (1720-1778), que registrou os “vestígios da antiga glória de Roma”. Aqui, os vestígios que Ana Lucia Mariz fotografou possuem o mesmo fio de voz, afetivo, onde a teia cria alma e tudo de aprofunda em planos nunca interrompidos. É assim, por exemplo, nas imagens realizadas no casarão que pertenceu a família de Santo Dumont: basta uma delas, onde uma cariátide intui um mergulho naquele passado, para deixar entreaberta a cortina do tempo diante dos dias vividos no interior do projeto arquitetônico pensando em Ramos de Azevedo, no qual a cidade e seus habitantes primeiro viveram os seus dias de glória. Dias esses que aparecem nas imagens do início do século passado. Depois, a mesmo cidade e os seus mesmos habitantes viram o “palácio” ser abandonado, ser invadido pela miséria nacional institucionalizada; a sua história ser traída pelas costas (como no drama Halicon, em Calígula); a entrada e a saída da droga nos seus ambientes outrora sofisticados, porque cada um daqueles indivíduos invasores que ali estavam precisavam de uma casa e de algum tipo de substância para imaginar que ainda estavam vivos.

 

Hoje, recuperada a construção abriga o Museu da Energia de São Paulo. Suas paredes amarelas estão limpas, ainda longe das pichações que Sã Paulo está tão acostumada a ver impressa nos seus monumentos históricos, nos marcos, do seu passado, e que, diante de tal manifestação, costuma-se dizer que aquela, a pichação, é a arte dos “sem voz”. Ao vermos a imagem daquela cariátide quase esboçando um sorriso, olhos arregalados, nem trágica nem romântica, essa história é inscrita em apenas uma fotografia. Uma fotografia que, ao mesmo tempo, conforta e ameaça.

 

Esse mesmo grito umedece as imagens feitas em Salvador, mais precisamente numa delas: o Forte de Santo Antônio, separando duas ladeiras alem da primeira Catedral da Sé, destruída em 1933, quando suas paredes de pedra lavrada escorreram montanha abaixo. Vistas a partir de uma guarita, as luzes do cais do porto sinalizam a idéia de uma cidade em movimento, cantada e falada como uma terra da felicidade, vista pela televisão em seus dias de Carnaval, quando os indivíduos – geralmente vindos do Sudeste do país, e que se sujeitam a serem chamados de Vips – sorriem muito nos camarotes descartáveis, sem ter a mínima idéia de que em torno deles centenas de construções, entre casarios e monumentos históricos, despencam na geometria da cidade. Depois eles vão embora, o rosto verdaccio pingando em nacos de esquecimento. As ruínas continuam ruínas. Então, o que o Brasil assiste pela televisão é ao fracasso da sua memória. Ninguém quer saber sobre si mesmo. Não é isso o que a fotografia de Ana Lucia Mariz quer dizer. A imagem do Forte de Santo Antônio nos fala tão simbolicamente desse estigma, é tão imbuída de um silêncio petrificado, que, ao contrario das imagens do casarão dos Campos Elíseos, não aponta nenhuma sensação de conforto: risca, na pele do olho, a sofreguidão e a melancolia com as quais o patrimônio do pais se olha no espelho. Talvez seja por causa desse silêncio, dessa sofreguidão e dessa melancolia que as ruas do Centro Histórico tenham-se tornado uma praça da violência, corpo e alma. É nesse momento que a fotografia salta para a musculatura do mundo real e ganha tanto o movimento quanto aquele, sentido, olhando pela fresta da guarita e iluminado pelas luzes do cais do porto. Assim, a cidade adormece.

 

Alma Secreta faz uso das cores em algumas imagens realizadas em terrenos baldios, momento em que o que ali existiu não pertence nem a cidade nem aos seus habitantes. E, também, no momento em que a Duvida do que será erguido toca os sete sentidos da própria urbis. São assim as fotografias de Ana Lucia Mariz: recortes vindos da linha do tempo, das noites do tempo, dos dias em comum, de um momento de intimidade entre ela mesma e o que os olhos dos outros poderão guardar (e não apenas o olhar) para que não percamos de vez a noção de onde viemos e o que somos, muito menos percamos a voz da nossa memória, tão em risco na pele do olho interrompido; nem pão, nem água, nem o leite escorrendo pelas ruas e favelas no mesmo chão de pedra lavrada.

 

Diógenes Moura,

curador de fotografia da Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Fotolivro
Herbário Baldio

Eder Chiodetto
e Fabiana Bruno

O futuro presente_2006

Agnaldo Farias

Série
Intervalos no Tempo_2015

Eder Chiodetto
e Fabiana Bruno

A noite dos tempos e o rosto verdaccio

Diógenes Moura

Reflexões da artista sobre o trabalho Intervalo de Tempo

Ana Lucia Mariz

Colapsos Invisíveis_2012

Mario Goia

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