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Textos

O futuro presente

por Agnaldo Farias

Desabitadas, destruídas de seus propósitos originais, abandonadas ao tempo natural para que apodreçam depois de anos de cordial submissão ao tempo dos homens, as ruínas vão ocupando as cidades na proporção direta em que estas se constroem. São como que fracassos densos e tangíveis, despojos de construções que um dia ofereceram conforto e funcionalidade, mas que hoje rumam em direção a morte. E talvez, por isso, porque nada mais sejam que despojos, as fotografias de Ana Lucia Mariz demonstram um particular interesse por elas. Suas fotografias, como toda fotografia assentada na profunda tradição dentro do que pode ser chamado de seqüestro do agora, padecem de um mal semelhante. Porque a maior parte da tradição fotográfica alimentou-se do quimérico desejo de não se curvar a destruição das coisas, tentou retê-las no presente, eternizá-las no que seria o momento de seu esplendor. Um sonho plantado no quadrilátero perfeito do papel fotográfico. Uma visão cultivada como uma planta química que hiberna dentro de uma campânula de vidro.

 

Vista sob esse ângulo a fotografia converte-se num instrumento próprio para o fabrico de monstros, o que de resto não é nenhuma novidade. Afinal, o que era Dorian Gray, a Celebre personagem de Oscar Wilde, paralisando na beleza enquanto seu retrato envelhecia no timo de suas vilanias, senão um monstro?

 

Ao contemplar essas imagens de Ana Lucia Mariz, todas elas sobre coisas corroídas, monturos de matérias e espaços que hoje convivem com a penumbra, o silêncio e a memória do que foram, é preciso ter em mente que a fotografia, tal como a artista concebe e pratica, filia-se justamente a essa orientação que pretende estancar o jorro do tempo, tem a pretensão de situar-se acima dele, como um pedaço do tempo presente que, a maneira de uma ilha, descola-se do fluxo das coisas, fixando-se como eternidade.

 

Um estado de suspensão, convém lembrar, que só será abalada quando também ela, a fotografia, seja pela via do papel ou pelo negativo, começar a ser atacada pelo tempo. Se nada escapa a esse adeus implacável, o que dizer do papel e do negativo, tão frágeis? E mesmo do arquivo digital, cuja matreira imaterialidade leva a criação de vírus tão ardilosos?

 

Ruínas e o presente são os denominadores comuns dessas imagens de Ana Lucia Mariz. Um curioso binômio, dando que, nelas, o presente corresponde ao futuro das coisas, quando elas já estão perto de seu fim. Armada de sua câmera e luzes, Ana Lucia Mariz visita ruínas centenárias realizadas em pedras e espessos tijolos de adobe; casarões abandonados, alguns deles parcialmente destruídos; o espaço lúgubre, e já desocupado, do antigo presídio do Carandiru; e terrenos baldios, essas clareias que são subitamente abertas entre as casas e prédios das grandes cidades. As imagens das ruínas centenárias, igrejas e outras construções monumentais, ocupadas por andaimes e passarelas executadas recentemente, leva-nos a pensar em como as nossas fotografias de agora serão vistas no futuro. De fato, se a idéia deste texto forçosamente breve é se concentrar nas imagens do futuro das coisas, as fotografias dessas ruínas conservadas leva-nos, por outro lado, a pensar na presença do passado, nos cuidados demandados na preservação de um tempo que já passou, um esforço no sentido de adiar a morte, um sentimento próprio de quem, como nós, consegue travar contato com essa dimensão da vida.

 

Desafiando essa tendência, a artista visita essas ruínas apontando a escala das edificações, sua grandiosidade freqüentemente acentuada pelo fato de algumas delas terem o céu como cobertura. A espessura das paredes desvestidas, ostentando a materialidade de suas pedras e do barro, os degraus dilacerados, o piso recoberto de grama, as janelas com seus postigos arrancados, emoldurando árvores próximas, tudo isso parece lançar as edificações para um passado ainda mais pretérito, como se o seu destino fosse o mesmo a indistinção entre elas e a natureza.

 

O mesmo não acontece com os interiores dos casarões, mais próximos de nossas experiências, a ponto de nelas ainda conseguirmos visualizar a vida que ate bem pouco abrigavam. As fachadas resistem precariamente, avultam-se com o esforço, a despeito do esboroamento do resto do edifício. Ambientes que antes eram destinados ao abrigo de pessoas, fonte de proteção e aconchego, agora são ocupados por escombros; quartos cujas portas e paredes jazem desfeitas, prenuncio de uma violência maior cujas forrações ornamentais só fazem aumentar. Mas há a lareira, a janela basculante da cozinha, posicionada ao lado do exaustor, outras cifras de vidas desenroladas num típico cenário doméstico que agora se encontra desmontado para sempre.

 

A artista não visita esses ambientes com o distanciamento. Interessa-lhe destacar sua própria presença, o que faz pelo recurso – não fora ela uma fotografa- de um facho de luz através do qual ela realiza desenhos, ressalta objetos, frisa situações, rápido intervalo em que deixa a câmera no tripé, com o diafragma aberto. As vezes depreende-se a visão de um corpo ou sombras de pessoas. Mas são fantasmas de agora. Manifestações coerentes com o impacto de um espaço que alude a efemeridade de tudo o que há. As imagens extraídas do Carandiru possuem uma outra especificidade. É inútil não admitir que a consciência do que se trata não incida sobre nossa recepção. Não poderia ser diferente. Por outro lado, ainda que não saiba, será possível deduzir dessa atmosfera soturna – como aquela em que se descortina uma sucessão de portas entreabertas ao longo de um corredor de pé-direito opressivamente baixo, portas igualmente opressivas, de ferro, e com a mesma abertura retangular na altura dos olhos – que se trata de uma penitenciária, desse triste símile da cidade, onde esse caminho longo – estreito e claustrofóbico – faz as vezes de rua, a cada cela equivale a uma casa. As portas são recobertas de signos e pontos de ferrugem. Impossível discernir uma coisa de outra, embora entendam-se os motivos que levaram-nas a servir de suporte de expressões que, na impossibilidade de se extravasarem a contento, lançaram-se para todos os lados, deixando suas marcas escondidas. Novamente, sublinhando, além dos fragmentos de diálogos com o sagrado e com a esperança, os objetos abandonados, mas que ainda seguem a espera, como se os habitantes estivessem prestes a voltar, retomando suas vidas insones.

 

Por fim, os terrenos baldios, as clareiras obtidas a custa de demolições recentes, o que se nota por meio do monturo de entulho de construção, das marcas pronunciadas dos pneus de caminhões e tratadores, do antigo piso, agora convertido em cacos e terra, de algumas poucas paredes, parcialmente destruídas, mas que ainda ostentam os restos encardidos das cerâmicas brancas que lhes revestiam.

 

Todas essas imagens desprendem silêncio e solidão. Erma e esgotadas, essas construções, todas elas apresentadas em registros recentes, balbuciam, no interior do alarido do presente, sua presença tangível e inquietante.

 

Agnaldo Farias,

Professor da FAU-USP.

Fotolivro
Herbário Baldio

Eder Chiodetto
e Fabiana Bruno

O futuro presente_2006

Agnaldo Farias

Série
Intervalos no Tempo_2015

Eder Chiodetto
e Fabiana Bruno

A noite dos tempos e o rosto verdaccio

Diógenes Moura

Reflexões da artista sobre o trabalho Intervalo de Tempo

Ana Lucia Mariz

Colapsos Invisíveis_2012

Mario Goia

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